
Em 1994, as noites da TV Globo se tornaram o palco de uma das novelas mais impactantes de sua história. “A Viagem”, escrita por Ivani Ribeiro, não apenas conquistou mais de 50 pontos de audiência como também imortalizou a história de Alexandre Toledo (Guilherme Fontes). Um jovem perdido em um mar de drogas, álcool e violência. Mas o que essa história tem a ver com a realidade das carceragens de São Paulo?
Vamos fazer uma viagem no tempo e entender a conexão entre a trama da novela e as mudanças nas condições do sistema penitenciário paulista.
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O Enredo de Alexandre: Uma História de Tragédia e Vingança
Alexandre Toledo é um personagem cuja trajetória se desenrola de maneira dramática e inevitável. Jovem, de classe média e um vício crescente, ele se vê envolvido em um crime que mudaria sua vida para sempre.
Após um assalto frustrado, ele acaba matando um homem, e o destino lhe cobra um preço alto. A traição de seus próprios familiares e uma condenação cruel. Em sua prisão, Alexandre se vê isolado, com a visita constante de sua irmã Diná (Christiane Torloni), que não medirá esforços para defendê-lo. Contudo, sua história termina tragicamente, com a morte de Alexandre e sua promessa de vingança — não importa se na vida ou na morte.
Essa trama de culpa, vingança e redenção, que se desenrola ao longo da novela, coloca o espectador em um turbilhão emocional. Mas o que realmente chama a atenção, além da dramática morte do personagem, é o cenário que molda sua prisão: as carceragens dos distritos policiais (DPs) de São Paulo. Esses locais, hoje desativados, criam uma sensação de claustrofobia e desespero, que ecoa o próprio estado emocional de Alexandre, preso em um ciclo de arrependimento e busca por justiça.
As Carceragens de São Paulo: Reflexos de um Passado Conturbado

Quando Alexandre é preso, ele começa a receber visitas de sua irmã em um local que, até hoje, desperta discussões sobre a realidade do sistema penal paulista. As visitas acontecem nas carceragens de um distrito policial — um cenário cenográfico que, se fosse filmado hoje, seria completamente diferente. Isso porque, a partir dos anos 2000, as carceragens dos DPs de São Paulo começaram a ser desativadas, e os presos passaram a ser transferidos para Centros de Detenção Provisória (CDPs).
Essa transformação no sistema de custódia teve como principal objetivo melhorar as condições de detenção, esvaziar as delegacias e combater a superlotação. As carceragens nos DPs eram conhecidas por suas condições inadequadas e por sua capacidade de lotação, o que muitas vezes levava à falta de salubridade e à possibilidade de revoltas, fugas e protestos de familiares.
Era um sistema instável e caótico, mas que, de certa forma, ainda refletia as tensões e angústias dos próprios personagens da novela, como Alexandre, condenado não apenas pelo crime cometido, mas também por um sistema que o aprisionava sem oferecer qualquer chance de reabilitação.
O Processo de Desativação: O Fim de Uma Era
O processo de desativação das carceragens nos distritos policiais ocorreu de forma gradual, com a transferência dos presos para centros mais adequados, conhecidos como CDPs. A medida foi justificada pela necessidade de desocupar as delegacias e melhorar as condições de custódia, criando um sistema mais organizado e eficiente. A superlotação, um dos maiores problemas enfrentados nas carceragens, era combatida com a construção desses centros em áreas estratégicas, espalhadas por todo o estado.
Na capital, um fenômeno curioso se estabeleceu: a lotação das carceragens dos DPs passou a ser associada à segurança do bairro. Quanto mais lotada a carceragem, mais perigoso o bairro parecia ser. E o oposto também era verdade — quando a lotação estava abaixo da capacidade, o bairro era considerado mais seguro. Essa relação, embora controversa, refletia a complexidade de um sistema que tentava, mas falhava em resolver as suas próprias contradições.
Uma Reflexão Profunda
Em “A Viagem”, a prisão de Alexandre não é apenas um cenário; ela é um reflexo da própria sociedade e de um sistema de justiça que, muitas vezes, parece falho e implacável. A novela não só narra a tragédia de um homem perdido entre suas escolhas erradas, mas também expõe a dureza e a ineficiência de um sistema prisional que se vê preso em suas próprias falhas.
Hoje, com as carceragens desativadas e os CDPs em operação, as condições de detenção em São Paulo tentam ser mais humanas e controladas. Mas será que o sistema realmente mudou? Ou será que, como na novela, continuamos presos a um ciclo de falhas e injustiças?
A pergunta que fica não é apenas sobre a evolução do sistema penitenciário, mas sobre as verdadeiras transformações sociais que precisamos para não repetir tragédias como a de Alexandre. A novela, com sua trama repleta de reviravoltas, não nos permite esquecer de que cada personagem, cada vida, é um reflexo das condições em que se encontra. E que, muitas vezes, essas condições são determinadas não apenas pelas escolhas individuais, mas pelo próprio sistema que nos cerca.
Agora, refletindo sobre as mudanças nas carceragens e os dilemas de Alexandre, será que o futuro será realmente diferente? Ou continuaremos a reviver as mesmas tragédias, apenas com novas roupagens? O que A Viagem nos ensina é que, para mudar, é necessário mais do que novas estruturas — é preciso um novo olhar sobre a humanidade.
Conclusão
Ao final de “A Viagem”, o que realmente permanece não é apenas a história de um homem perdido em seus próprios demônios, mas a reflexão sobre as cicatrizes deixadas por um sistema que ainda luta para se reformar. Alexandre Toledo, como tantos outros, se vê aprisionado por suas escolhas, mas também pelas falhas de um sistema que o deixa sem alternativas. A novela, ao mostrar a fragilidade humana e as injustiças que permeiam a sociedade, nos provoca a questionar: será que estamos verdadeiramente mudando?
As carceragens desativadas e os novos Centros de Detenção Provisória são apenas parte de uma transformação maior que ainda está por vir. A verdadeira mudança não acontece apenas no concreto das estruturas penitenciárias, mas na forma como vemos a justiça, a reabilitação e, principalmente, a dignidade humana. Se a história de Alexandre nos ensinou algo, é que o perdão, a redenção e a verdadeira justiça começam com uma reflexão sobre o sistema que nos cerca — um sistema que, por vezes, mais cria monstros do que os cura.
E você? Está pronto para questionar não apenas o passado, mas as escolhas do presente que moldam nosso futuro? A verdadeira viagem, talvez, seja a jornada interior que cada um de nós precisa fazer.
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